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A CONCERTISTA - Chico


Nas cidades do interior quase todas as pessoas se conhecem. As histórias e as intenções de todos, ou de quase todos, são de domínio público. Mas, há sempre segredos que se preservam, às vezes por muitos anos, às vezes por toda a vida.
A jovem pianista era talentosa. Suas mãos e sua postura eram diferenciadas. No final do curso, no conservatório local, passou a fazer apresentações individuais. Muita gente comparecia ao teatro. Nas cadeiras do fundo, despercebido na plateia, alguém ouvia e era cativado pela moça. Não somente com seu talento, mas com seu sorriso e seu jeito de quase mulher.
Mas era preciso que a pianista se aperfeiçoasse e veio a mudança para a capital. Durante algum tempo, nos encerramentos de ano se programavam audições especiais, proporcionadas pela então jovem concertista, que presenteava a cidade com sua desenvoltura.
Nas mesmas cadeiras do teatro, o homem deixava que o encanto pela pianista ganhasse mais espaço em sua vida. Mesmo que a pudesse ver e ouvir apenas uma vez por ano e nunca tivesse conseguido falar com ela. Mesmo que ela, sob os holofotes, nunca tivesse percebido a presença dele.
Como era preciso que a pianista continuasse a se aperfeiçoar, veio a mudança para o exterior. Assim, não havia mais o regresso aos finais de ano. A agora renomada concertista voltava a intervalos cada vez maiores para permitir que a cidade a assistisse. O mesmo homem se fazia presente, sempre sentado nas últimas cadeiras do teatro onde cultivou sua secreta e solitária paixão.
Ao observar as mãos perfeitas e o perfil que construiu o castelo de seus sonhos, experimentava um misto de realização e expectativa. Não podia negar que a aquela mulher havia passado a ocupar todo o espaço de sua vida. Mesmo que nunca tivesse falado com ela. Mesmo que ela nunca tivesse percebido sua presença.
Ela havia se dedicado somente à sua carreira musical, durante todo este tempo (nas cidades do interior, as pessoas dispõem de muitas informações).
Embora não soubesse quando seria o próximo concerto, prometeu a si mesmo, como das outras vezes, que não mais permaneceria nas últimas filas do teatro, aplaudindo de pé o desempenho da mulher de sua vida. Iria cumprimentá-la e, na sutileza do toque das mãos, talvez ela se agradasse com sua presença, já contornada de cabelos grisalhos, e pudesse ler em seus olhos as intenções que permaneceram guardadas por quase toda uma vida.
Talvez, ainda, ela estivesse sozinha. Talvez as palavras por ele ensaiadas desde sempre alcançassem os ouvidos sensíveis da sua concertista. Talvez, ainda, não fosse tarde demais.


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