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SONHO DE UMA TARDE DE OUTONO



As vozes animadas se intercalavam com o café bem quente, oportuno naquelas circunstâncias. Todos ao redor sabiam do que se falava naquele grupo.
Tardes de outono. Numa das mesas da cantina, a ruidosa conversa entre amigos na manhã cinza de inverno se concentrava nesse tema.
As opiniões convergiam à constatação de que as tardes de outono são incomparavelmente azuis e apropriadas para a vivência de momentos a serem relembrados. E exemplos ilustrativos não faltaram.
Na mesa ao lado, eu apenas ouvia. E, no meu silêncio, acrescentei  um substantivo ao tema (sem ignorar a necessária preposição): sonho de uma tarde de outono.
Tendo sido músico em outras épocas, me pareceu conveniente adotar essa alternativa. A partir daí, abstraído da conversa, fui consultando meus arquivos de memória à procura de momentos vivenciados em tal cenário.
Sem muito empenho, encontrei alguns. Entre eles, me detive naquele que considerei o mais significativo.
Poderia escrever ao final do relato, porém antecipo registrando que a condição fundamental para que o momento tenha sido inesquecível não somente foi o tom incomparavelmente azul daquela tarde. Foi a companhia perfeita. Sem ela tudo cairia no esquecimento.
A cidade, conhecida por sua vocação turística, recebe cotidianamente muitos visitantes, com as mais diferentes expectativas. Curiosas histórias são guardadas em suas tortuosas ruas, de irregular topografia.

Caminhar por elas em direção à confeitaria havia sido um agradável aperitivo: conversar a respeito de tudo, sem pressa e sem restrições. Como se fosse uma entre as primeiras vezes. Aliás, tão bom como todas as outras vezes.
Depois, já acomodados à mesa, o diálogo havia prosseguido enquanto se escolhiam os itens culinários a experimentar, com suas características próprias, aparência e sabor inconfundíveis. Momentos incríveis!
Pensei: nada seria preciso adicionar.
Mudei de ideia. Caberia destacar a música suave que alegrava o ambiente, os sorrisos gostosos que foram trocados, a sensação de paz que palavras dificilmente conseguiriam expressar e o desejo (que não se consumou, ainda) de revisitar aquela confeitaria. Sim, com a companhia perfeita.
Bem... o início da noite naquelas ruas também havia sido inesquecível.
Ainda imerso nessa lembrança, fui avisado pela atendente da cantina que meus alunos me esperavam para a aula.
- “Estava com o pensamento distante, Professor ...”
Concordei com ela. Por um instante cogitei até revelar detalhes do que havia provocado meu devaneio.
Mas... preferi me calar.

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