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VIAGENS: PRIMEIRO CAPÍTULO - Chico


A vida é feita em capítulos. E não há escritor que invente histórias com a riqueza de detalhes com que a vida constrói sua narrativa.
Em três dias-capítulos espero contar uma história que considero plausível. Terá ela realmente ocorrido? Algum dia será realidade?
Alguém poderá dizer: “Vivi algo parecido!” e serei levado a acreditar. Afinal: o que seria de nós sem os surpreendentes enredos que a vida nos propõe?
Deixo o convite para que você me acompanhe nestas

VIAGENS

Segunda-feira, 23 horas. A casa estava quase em silêncio, como todos os dias a esta hora. Apenas calmas canções preenchiam seus espaços noturnos e o caminho dos sonhos era trilhado por aquele que vinha se encantando com as mesmas lembranças, nos últimos meses. Apenas um encontro e a vida havia recuperado as razões e os motivos, tão necessários quando outros motivos e razões pareciam prosseguir em suas rotas de gradativa dissipação. Apenas um encontro, meses atrás, num lugar não planejado. Apenas um encontro, algo que não conseguia entender nem explicar.

Lembrou-se, mais uma vez, da noite em que suas palavras haviam percorrido a sala como sinais de uma experiência de vida e se completavam em propostas, sugestões de escolha, interpretações de consequências. Estava convicto de que as experiências compartilhadas levam à expansão dos limites estabelecidos e propiciam redesenhar as fronteiras. Algumas vezes seus olhares convergiam, nada mais que isto, a princípio. Depois, no jantar, a delicada imagem se cristalizou: a mulher luminosa, vinda de tão longe, vinda como os ares da primavera, vinda com o tempo que se manifesta sempre com suas surpresas. E algumas delas tendem a se perpetuar como tatuagens nos corações e nas mentes dispostas ao inesperado. Foi assim. A primeira vez havia sido assim.

Permaneceram juntos durante todo o dia seguinte. Vivenciaram o que lhes foi possível, compartilhando a suave magia da presença e outros detalhes consentidos que unicamente palavras são incapazes de descrever. Simples momentos, pequenos sinais e cuidados recíprocos, sorrisos cuja suavidade se transformou em homenagem a tudo aquilo que estava sendo objeto de descoberta e de celebração. Precisaram se despedir naquela mesma noite. Aos poucos, as mãos se distanciaram como prenúncio de algo definitivo, pelo menos ele considerou esta possibilidade. Qualquer outra expectativa não caberia naquela hora, afinal seria mais prudente deixar que a vida se encarregasse do que poderia estar por vir.

Meses atrás.

Terça-feira, 22 horas. Longas horas, muitos preparativos. Dentro de poucos dias voltariam a se encontrar. Este era o prognóstico, confirmado em uma das mensagens enviadas à sua caixa postal. Abençoada informática. Seus recursos, cada vez mais amplos, permitem encurtar distâncias, facilitar contatos, resgatar impressões de estar ao lado, ensejar a manutenção de diálogos. As mesmas canções noturnas o acompanhavam na conferência de todos os pormenores que precisavam estar à disposição quando os olhares se reconhecessem.

Recordou que os primeiros contatos haviam soado como alentadoras companhias nestes momentos de transição. Solitário, sentia suas semanas, seus meses se sucederem sem renovação de cores. Imaginou que a nova amiga também viesse a ter efêmera permanência. Depois, percebeu que talvez a transitoriedade não se consumasse. Foi ótimo ter começado a dividir o que a distância possibilitava: as reflexões durante a caminhada noturna pela cidade que se fez história; as expectativas pelo que poderia vir a ser uma outra realidade diante das alternativas de realidade que se apresentavam; os diferentes modos de declarar que a vida havia revelado encanto e graça por intermédio de uma nova variedade de harmonia que agora vinha enfeitando seu mundo. Enfeitando e iluminando. E os dias se faziam longos e serenos; rápidos e movimentados. Mas, não estava acostumado ao convívio com as limitações impostas pela intransigência do tempo e da distância. Uma nuance diferente de aprendizado estaria se aproximando.

Avaliou tudo o que havia recuperado em suas expectativas. Um clima de festa havia se instalado no coração e nos lábios. Por outro lado, sempre se perguntava o que estaria percorrendo os sentimentos daquela luminosa mulher com quem, meses atrás, havia se encontrado num lugar não planejado, uma única vez. A mulher vinda de tão longe, trazendo alento e euforia. Não insistia em determinar as respostas, era preciso deixar os sentidos se ocuparem do que se mostrava essencial. Estava, outra vez, se convencendo de que a vida não se consuma em breves experimentos e, entre outros afetos, as amizades são essenciais.

Algo, nisto tudo, havia ficado evidente: sua nova amiga era linda.

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