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Mostrando postagens de julho, 2017

SONHO DE UMA TARDE DE OUTONO

As vozes animadas se intercalavam com o café bem quente, oportuno naquelas circunstâncias. Todos ao redor sabiam do que se falava naquele grupo. Tardes de outono . Numa das mesas da cantina, a ruidosa conversa entre amigos na manhã cinza de inverno se concentrava nesse tema. As opiniões convergiam à constatação de que as tardes de outono são incomparavelmente azuis e apropriadas para a vivência de momentos a serem relembrados. E exemplos ilustrativos não faltaram. Na mesa ao lado, eu apenas ouvia. E, no meu silêncio, acrescentei  um substantivo ao tema (sem ignorar a necessária preposição):  sonho de uma tarde de outono . Tendo sido músico em outras épocas, me pareceu conveniente adotar essa alternativa. A partir daí, abstraído da conversa, fui consultando meus arquivos de memória à procura de momentos vivenciados em tal cenário. Sem muito empenho, encontrei alguns. Entre eles, me detive naquele que considerei o mais significativo. Poderia escrever ao final do rela

O ASPIRANTE A ESCRITOR

Assim como tantos anônimos que se dedicam, entre outros afazeres, a articular ou registrar histórias, aquele amante das palavras não tinha o hábito de compartilhar suas intenções. Considerava-se um aspirante a escritor. Acreditava na contínua lapidação daqueles que nasceram com esta intransferível aliança com a vida. O quanto de acerto existiria neste pressuposto nunca fora objeto de seu questionamento. Ávido leitor, aos poucos foi se encantando com as protagonistas que conhecidos nomes da literatura brasileira haviam imortalizado. Três delas eram suas preferidas: - Capitu, de Machado de Assis, obstinação amorosa de Bentinho, com sua misteriosa sensualidade; - Lucíola (ou Maria da Glória), de José de Alencar, com sua trajetória de adversidades e regeneração; - Gabriela, de Jorge Amado, com espírito livre e insubmisso às convenções de uma sociedade patriarcal. Ao lado desse seu encanto, algumas questões continuamente o incomodavam: como as relações entre realidade e

LISBOA NÃO LHE PARECEU ACOLHEDORA

Ao regressar para casa, houve atraso na conexão em Barcelona. Aproveitou para refletir a respeito dos acontecimentos dos últimos dias. Na semana anterior havia comemorado seu aniversário de um jeito diferente do que pretendia. Imaginava receber como presente a reciprocidade do afeto por parte de quem era o foco de seu envolvimento. Mas não tinha sido assim. Havia percebido com clareza que tal expectativa não se consumaria e as consequências poderiam deixar marcas de frustração. Os projetos de vida eram antagônicos e um relacionamento promissor acabaria se transformando em convivência parcial, durante o curto intervalo de tempo que ainda tivessem à disposição. Mesmo por alguns dias, uma viagem talvez fosse alentadora. A caminho de Portugal, a passagem pelo Aeroporto de Milão havia sido cansativa e pousar em Lisboa foi um grande alívio. Alguns minutos no Metrô, troca de linhas em Alameda. Em seguida, a Estação Roma e finalmente um pouco de descanso no hotel. Ansiava por u

SOBRE AS PROPRIEDADES DA CASCA DO MIRTILO - Maria Cristina

Ana: dois filhos, separada, psicóloga. Como muitas das que conheço, é mulher batalhadora. Trabalha em dois empregos, leva os filhos para a escola, sai correndo, deixa de almoçar para chegar a tempo ao consultório. Sai correndo novamente, paga a babá, faz o jantar, às vezes consegue colocar as crianças na cama, reza por elas. De vez em quando o pai de seus filhos os leva para um passeio no domingo. Ana se veste, vai para o samba, ri com os amigos, assiste a séries na TV e toma uma taça de vinho. Pouco tempo sobra para Ana, a poucos caprichos ela se entrega. Ana trabalha, cuida, educa e sorri. Em épocas de mensagens eletrônicas, em uma tarde no trabalho, Ana recebe uma pelo celular. Matias: - “Preciso falar com você”. Ana se lembra de Matias: o garoto bonito e o mais disputado dos tempos de colégio. Estudaram juntos há anos atrás, mas jamais voltaram a se ver ou a se falar. Fazem parte de uma rede social, Ana já havia observado algumas das fotos postadas por ele. Ao se d

TARDE

Mesmo anos depois, seria imediato trazer à memória os sinais que distinguiam aquela mulher, de mãos suaves e palavras incisivas. Depois dela talvez houvessem vindo outras e a densidade da permanência sempre esteve associada à identificação das ideias. Era isto. Ou quase. Havia também outros aspectos. Mas não era o momento de detalhá-los. Os olhos dela, intensamente claros, estavam contornados pelos reflexos dos vespertinos raios de sol, incorporados aos seus cabelos. Estes, sempre atraentes, não pareciam mais longos que antes. Nem mais curtos. Pressentiu no ar sintomas de um antigo lirismo, talvez mais fortes do que ele seria capaz de resistir. O semblante inconfundível, os passos seguros e o olhar convicto eram coerentes com o que uma vez havia mencionado ser seu modo de absorver as circunstâncias. Mente lúcida, transitando entre a despreocupação e a determinação. E o tom mágico no jeito de falar. Estava bem perto dela. Ela talvez não o reconhecesse naquela improvável

FÉRIAS: TEMPO DE ARRUMAR OS ARMÁRIOS - Maria Cristina

Desde que me conheço por gente é assim. Chegam as férias e, junto com elas, a (quase que obrigação social) necessidade de arrumar os armários e gavetas (e com sorte as ideias também). Quando a gente era criança, mamãe ensinava: "meias e calcinhas novas numa gaveta separada" e ainda: "roupas de passear de um lado e as de ficar em casa do outro." E tinha mais uma: "vejam as roupas que não servem mais para doar para as crianças que não têm..." No armário de brinquedos era a mesma coisa: "separem aqueles com que não brincam mais, só assim caberão os novos que Papai Noel vai trazer!" E tinha a escrivaninha... ah! "reaproveitem os lápis de cor! Não tem cabimento comprar uma dessas caixas toda vez que vocês passam de ano!" E era sempre assim, com uma ou outra alteração por conta da idade ou da expectativa infante. Faz muitos anos que não moro mais com a mamãe, mas estou de férias e hoje foi dia de arrumar o armário, as gavetas e

DUAS ENGENHEIRAS E UMA DÚVIDA

Ana Laura e Camila são duas engenheiras que estão desenvolvendo seu doutorado comigo. Assíduas leitoras a partir do retorno deste blog, vivem trazendo suas opiniões referentes àquilo que foi postado, discutindo aspectos dos textos e sugerindo temas para as futuras publicações. Nesta semana, depois de lerem e, segundo elas, relerem e relerem o post “ Pedro não pôde vir ” ( http://dosesoblogdochico.blogspot.com.br/2017/06/pedro-nao-pode-vir.html) tiveram sua curiosidade despertada e me indagaram a respeito do teor da carta que o narrador da história havia encaminhado para a personagem Letícia. - “Humm... por que vocês acham que eu saberia?” Bem, esta resposta pareceu-lhes não convincente. - “Ah, professor, claro que sabe!” Tentei outro argumento, mencionando que a leitura deve permitir à imaginação alçar seus voos diante dos conteúdos aos quais houve acesso. Disse também que esta liberdade, ao levar as pessoas ao exercício da criatividade, pode estabelecer os elos