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TARDE





Mesmo anos depois, seria imediato trazer à memória os sinais que distinguiam aquela mulher, de mãos suaves e palavras incisivas. Depois dela talvez houvessem vindo outras e a densidade da permanência sempre esteve associada à identificação das ideias. Era isto. Ou quase. Havia também outros aspectos. Mas não era o momento de detalhá-los.
Os olhos dela, intensamente claros, estavam contornados pelos reflexos dos vespertinos raios de sol, incorporados aos seus cabelos. Estes, sempre atraentes, não pareciam mais longos que antes. Nem mais curtos.
Pressentiu no ar sintomas de um antigo lirismo, talvez mais fortes do que ele seria capaz de resistir.
O semblante inconfundível, os passos seguros e o olhar convicto eram coerentes com o que uma vez havia mencionado ser seu modo de absorver as circunstâncias. Mente lúcida, transitando entre a despreocupação e a determinação. E o tom mágico no jeito de falar.
Estava bem perto dela. Ela talvez não o reconhecesse naquela improvável rua, naquela improvável cidade. Atreveu-se:
- “Olá!”
Uns instantes de surpresa e a resposta:
- “Oiii, tudo bem?”
Era mesmo ela! Ah... estes olhos, este rosto, esta voz mansa!
Em seguida, vieram algumas frases absolutamente convencionais.
Depois... bem, depois andaram juntos pela rua, cruzaram praças um tanto deformadas, monumentos esquecidos e as muitas pessoas que passavam por ali.
Reatando a afinidade, seguiram absortos por rumos aleatórios, juntando mãos e passos. Caminharam até que anoitecesse e conseguissem se acomodar nos cenários de algum recanto tranquilo, onde pudessem estar realmente a sós e houvesse silêncio ao redor.
Falaram a respeito de tudo.
Permitiram-se todos os sorrisos guardados desde a última vez em que estiveram juntos. Uma espera que não acreditavam ter existido tão prolongada. De algum modo, se redescobriram e experimentaram a sutileza das redescobertas. Celebraram inusitadas manifestações de mútua compreensão, provavelmente as definitivas.
Lembraram-se de antigas promessas que, naquele instante, pareciam não mais fazer sentido.
Dissecando passado e presente, localizaram conquistas, reviveram encantos e deixaram as cores da suavidade e da harmonia os seduzir. Festejaram, enfim, suas expressões de paz e intimidade.
Apesar de envolvidos, compreenderam que não haveria como combinar os próximos encontros, as próximas tardes de outono e as outras horas de ternura.   
Talvez já fosse tarde para compor uma nova expectativa. Muito tarde.
Era madrugada e precisaram afastar as mãos, baixar os olhos, retomar os passos, prosseguindo cada um pelo seu sentido na vida.
Amanhecia. E se calaram.





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