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TEMPO - Maria Cristina



Ela cresceu com mais medo do tempo que do bicho papão. Desde a infância achava que o monstro dos anos passava mais rápido do que imaginava poder acompanhar.

A equação tempo x sonho nunca fechou... sobravam sonhos e faltava tempo para aquela inquietude que a acompanhava desde as fraldas. Certa vez, cochicharam em seu ouvido: "o tempo fabrica monstros". A partir de então seu maior temor passou a ser o de ser mastigada e engolida por ele.

Num belo dia de verão (ela adora os dias claros e quentes), numa dessas habituais olhadelas no espelho, percebeu que já não era tão jovem. Viu-se com quilinhos a mais, cabelos a menos, sem falar nos fios brancos que não tardaram a aparecer (além da enorme mala de expectativas que sempre foi perita em cultivar e carregar). Nas pernas percebeu alguns vasos traçando caminhos, reparou nas rugas da testa. Algumas das chamadas linhas de expressão já marcavam presença. Sentia dores nas costas mesmo achando que elas tardariam a aparecer. Precoces...

Como podia? Lembrava perfeitamente da elasticidade de seu corpo de bailarina. Os músculos não teriam o direito de negarem-se a responder suas ordens. Ou teriam? E pensar que isso era só o começo...

Olhou novamente e o reflexo sequer parecia com aquela menina de dezoito anos. Aliás, não era nem de longe (nem de perto, nem de dentro e nem de fora) aquela pessoa. Será que a malvada profecia havia se cumprido e teria, enfim, se transformado num monstro? 

Na busca de uma resposta e na tentativa de uma reflexão (essa sua mania incansável de ponderar) viu-se intimamente. E sem querer, num passe de mágica, perdoou o tempo.
O tempo das rugas, dos prazos, dos monstros, dos alarmes, das marcas, da pressa, da ansiedade (e hoje em especial, da saudade e das lágrimas) é o mesmo, o próprio, da esperança, do descanso, das histórias e registros, da memória e dos reencontros! É ele, sim, o responsável por concretizar grandes amores, adormecer paixões (ou não - às vezes elas são promovidas a amores - ainda que platônicos), fazer esquecer, fechar feridas...

Ela percebeu que foi o tempo que a fez ter lembranças incríveis, que formou - e muitas vezes mudou - suas opiniões (metamorfose ambulante), que a fez conhecer e respeitar suas própria vontades e desejos. Foi o tempo que a permitiu, hoje, descobrir que, apesar da pouca idade, tem muitas histórias pra contar.


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