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AS DUAS AMIGAS - Chico


AS DUAS AMIGAS

Moraram juntas por mais de quarenta anos e sempre no mesmo lugar. Na mesma esquina, em frente à praça da matriz, é claro. A cidade era pequena e conservava os ares bucólicos marcando as casas, as ruas, os jardins e as pessoas.
As duas amigas tinham quase a mesma idade. Trabalharam sempre ensinando às crianças as primeiras palavras e seu significado. Juntas, alfabetizaram muitos daquela cidade. Suas recompensas eram experimentadas todas as manhãs: somente alguns acenos e cumprimentos enquanto caminhavam pelos lugares de costume.
Ao retornarem à casa, entregavam-se ao cotidiano das pequenas coisas que compunham seus dias iguais: a rápida limpeza dos cômodos, o almoço, a sesta, alguma leitura, o chá no final da tarde. E as lembranças. Não conseguiam transformar esta rotina.
A escola havia tomado todo o tempo da juventude das duas mulheres que a vida reuniu como um pactuado acaso. Juntaram suas solidões quando se descobriram desguarnecidas pelos familiares e pelas demais alternativas de companhia. Acostumaram-se ao que lhes pareceu inevitável.
Receberam poucos sorrisos. Talvez tivessem sido objeto de muito respeito e (quem sabe?) inspirassem um pouco de receio às pessoas que as haviam conhecido nas salas de aula. Não eram convidadas para visitas e, assim, pouco lhes restava além de si mesmas.
No início das noites, permaneciam na varanda da casa, observando os que passavam. Palidamente respondiam às saudações dos vizinhos, enquanto ansiavam pelas perguntas que ninguém lhes dirigia. Tantas respostas ficaram guardadas nas bocas e nos corações que, aos poucos, iam se despedindo das esperanças mais singelas da vida.
A música erudita, no cenário de suas horas cada vez mais longas, era responsável pelo que lhes podia restar de alento aos sentidos. Apenas as mentes, num exercício quase desesperado de liberdade, ainda ousavam algum tipo de voo noturno, onde as companhias mudavam de nome e de intenção, os gestos deixavam seu ritual contido e se soltavam nas asas de um romantismo que o recato proibia ser extravasado em palavras.
Assim viviam: de silêncio, perplexidade e distância, sem perceber as veredas do tempo se aproximando do destino de suas vidas.
Numa tarde de inverno, uma delas partiu. Nos poucos dias seguintes, a solidão a duas se resumiu à apenas uma solidão. Não houve mais passeios nas singelas manhãs da pequena cidade. Não houve mais almoços, nem sestas. Cessaram as horas na varanda e as saudações dos conhecidos da vizinhança. A música não foi mais tocada e derradeiros voos se diluíram nos céus agora descoloridos.
Numa outra tarde de inverno, a outra amiga também se foi.
Pelo que se soube na cidade, quase ninguém chorou pelas duas amigas que moraram juntas, por muito tempo, naquela casa de esquina em frente à praça da matriz.


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