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ÉPOCA DA INOCÊNCIA - Chico


Aquele era um tempo, num lugar prefigurado, onde a maioria das casas possuía largos quintais e vizinhança dedicada. Apenas algumas dispunham de seda nas mesas alongadas ornando as salas, com vitrais coloridos e prataria bem cuidada.
Os meses pareciam correr mais lentamente e não era preciso copiar as chaves das portas, nem lhes posicionar rigorosos obstáculos: as crianças podiam sair e brincar a qualquer instante, mesmo sem adultos ao seu lado.
A singeleza da inocência de uns poucos lhes permitia aos olhos não identificar os inconfessáveis desejos de posse e a antecipada nostalgia provocada pelas iminentes partidas.
Havia os bailes para aproximar as mãos e os corpos dos que se impacientavam com a monotonia das noites iguais, rendendo-lhes promessas que nem sempre seriam observadas.
Aos poucos, percebeu-se que o compasso do tempo não poupava colos e faces, mas acentuava distâncias, impedindo ao abraço a entrega e ao beijo a convicção de absoluta afinidade. À lembrança restava o ensaio diário da espera.
Quando os álibis deixaram de viabilizar os calorosos instantes da paixão compartilhada, restaram os vitrais coloridos, a prataria bem cuidada, a seda e os cabelos arrumados apenas para o prenúncio de gala.
Quando os mares do tempo foram definitivamente atravessados, os vitrais foram substituídos pela simplicidade das janelas repetitivas ornamentando edifícios, agora imperceptíveis em suas linhas sistematicamente idênticas.
Não mais se fazia necessária a imagem do semblante, as vozes já haviam divisado o adeus. Nos corações, permaneceram apenas as emoções das fortuitas horas de secreta entrega.
Ao mesmo tempo, rugas cada vez mais numerosas vieram denunciar a impossibilidade de reviver as noites especiais. Do outro lado das ruas da vida, nem os que caminhavam sem qualquer pressa teriam percebido os derradeiros passos rumo à definitiva ausência.
  

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