Ontem, ao ler o texto neste blog, um amigo me ligou e disse que havia gostado do tema.
Deixou uma pergunta: "Rocco, por que não escreve a respeito de alguma coisa que seu avô contou pra você?". Ótima ideia. Então...aqui vai uma história que (muito provavelmente) meu avô tenha contado só para mim.
João, filho Hannah e
Jacob, judeus vindos do sudeste da Alemanha em tempos difíceis, era meu avô
paterno. Sempre tivemos muita afinidade, conversávamos bastante e ele me
contava muitas histórias.
Esta é uma delas, narrada por ele em capítulos: cada um detalhado nos nossos diálogos, aos sábados à
tarde, mais frequentes nos derradeiros anos de sua vida.
Ramires era profissional
de vendas. Às vezes passava semanas viajando e, ao voltar, ia se
encontrar com meu avô em seu comércio. Não era cliente, era um amigo.
Meu avô se admirava
com as novidades trazidas pelo Ramires: detalhes do Metrô de São Paulo, em fase
de construção; do novo aeroporto no
Rio de Janeiro; das novas hidrelétricas. E comentava
tudo isso com seu neto, um futuro engenheiro.
Um dia,
entretanto, a conversa entre os dois amigos ganhou novos contornos. Ramires
começou a discorrer sobre uma mulher que havia conhecido, alguém que o havia
encantado. Com seu modo simpático, com suas palavras singelas e serenas, com
seus olhos verdes, suas mãos macias, sua morenice cativante.
João
acreditava que o amigo se preparava para um novo começo.
Naquela altura, a
saúde de meu avô já preocupava: sabíamos de suas sérias limitações cardíacas. A respiração ofegante e o discurso pausado eram sinais de que a doença estava saindo do
controle.
Numa outra tarde de sábado, Ramires
volta a ser lembrado. “Estava indo embora da cidade”, assinalou meu avô, “para cumprir
seu destino”. Iria tentar conquistar aquela encantadora mulher que o havia
seduzido e se tornado essencial em sua existência. Ela morava muito longe.
Meses depois, numa
tarde que prenunciava outra espécie de despedida, meu avô retornou ao tema.
- Ele nunca mais deu
notícia!
- Será que conseguiu
conquistar a mulher por quem se encantou?
- Creio que sim.
. Como era mesmo o
nome dela? – arrisquei a pergunta.
- Prometi não revelar
a ninguém. Nem o lugar para onde foi. Guarde para você apenas as iniciais do
nome. E as pronunciou.
Suas palavras ainda
soam nos meus ouvidos:
- Francisco, tenho
certeza de que um dia você escreverá esta história. Com seu jeito próprio de
tratar as palavras. Não se esqueça dos detalhes. Peço que faça isto.
- Quem sabe? Mas,
antes, eu precisaria entendê-la!
- É uma questão de
tempo, filho!
Abraçou-me com o
carinho do tamanho de sua bondade e do amor que sempre teve por mim. Um longo e
definitivo abraço. Dias depois, chegou a
notícia de sua partida. Mesmo preparados, todos da família sentimos muito. E
ainda sentimos, até hoje.
Durante esse tempo, várias vezes havia perguntado a meu pai e a outros familiares a respeito do Ramires. Nenhum deles se lembrava de tal pessoa.
No outro sábado, retornei à casa de meu avô.
Um dos tios conversava com alguém que viera apresentar seus pêsames.
Tocou o telefone.
- Francisco, você
pode atender?
- Já vou.
Atendi e me
identifiquei.
- Bom dia! Gostaria
de falar com o João!
O tom de voz
demonstrava euforia. Como responder numa hora destas?
- Lamento informar, meu
avô faleceu. Na semana passada. Quem está falando?
- Um amigo dele, o Ramires. Rapaz, não
esperava por esta! Nos conhecíamos há anos, uma grande amizade. Mas sua saúde
estava mesmo debilitada.
O que estava ocorrendo não me parecia
real. Mas era verdade.
- Telefonei para contar a ele apenas
uma coisa: Flora Maria e eu estamos de casamento marcado para o mês que vem.
Vivemos muito felizes, vamos continuar morando em Corumbá. Quando me encontrei pela última vez com o João, prometi que ele seria o
único a receber esta notícia.
As iniciais, pensei, as iniciais do
nome eram as mesmas.
Ramires continuou.
- Francisco, que
coincidência! Ele sempre falava do grande afeto que sentia por você. Lembre-se
sempre disto. E, por favor, não conte a ninguém que conversamos.
Fiquei mudo. Nem sei se
Ramires concluiu a frase. O sinal intermitente do aparelho confirmava que a
ligação havia sido encerrada.
- Quem era? - perguntou o tio.
- Alguém discou
número errado.
Foi tudo o que consegui responder. Despedi-me e voltei para casa. Ainda atônito, trazia comigo o coração
acelerado e os olhos umedecidos.
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